sexta-feira, 13 de junho de 2014

THEATRO MUNICIPAL, PÉROLA CENTENÁRIA

Maria Inês de Araújo Prado, santista e sanjoanense, professora, advogada, membro correspondente da Academia de Letras de São João da Boa Vista, escritora, colaboradora eventual de jornais locais e outros; cronista do Edição Extra, desde 2006. Theatro Municipal, pérola centenária A origem da dramaturgia é primitiva, o que demonstra a importância da teatralização. Segundo estudiosos, o teatro – theátron - tem origem na Grécia Antiga (século VI, A.C.), sendo a arte de representar uma das formas mais originais e ricas de perpetuação da história dos povos. Graças ao teatro, William Shakespeare, o gênio, e outros grandes da dramaturgia e da literatura mundial se mantêm vivos, estudados e apreciados por gerações inteiras. No Brasil, o teatro foi introduzido pelos jesuítas (1564), pois viam a dramaturgia como meio eficaz de catequização dos índios, que já se deliciavam com a música e a dança, ótimos complementos da encenação. Assim, é justo inferir que nossas primeiras “produções” foram de cunho eminentemente religioso, como os clássicos “autos”. *** Quando vim de mudança para esta terra que tanto amo, São João da Boa Vista, sabia que um dos meus entretenimentos estava garantido. Mesmo ciente de que o Theatro Municipal fora desativado, à espera de restauração, eu comemorava as oportunidades vindouras de deliciar-me com a sensação indescritível que me toma inteira, quando vou assistir a uma peça. Sensação essa que começa nos preparativos, expande-se na chegada ao teatro, aprofunda-se à medida que mergulho na trama encenada (digo trama, pois é minha preferência), prolonga-se espetáculo adentro e povoa meus sonhos. Digamos que o teatro me leva a flutuar. Nunca atuei num palco, mas percebo ali a grande chance de o ser humano manifestar emoções escondidas ou sublimadas. Assim, alguém que seja muito passivo, aqui fora, pode liberar, no palco, agressividade inusitada. Uma atriz pode incorporar uma professora, uma freira, uma psicóloga, uma chefe de estado, uma amante ou qualquer outro papel que talvez satisfaça aspirações jamais vivenciadas no dia a dia. A restauração do nosso Theatro Municipal durou anos, como poderia contar o Carlos Gomes quase imperceptível, pintado no teto. Acompanhei o processo de restauro, par e passo, ansiosa para ver tudo resplandecente e a plateia lotada. Enquanto tal não acontecia, tive o prazer de sugerir, a alunas do Externato Santo Agostinho, uma visitação ao local em reforma, seguida de relato sobre a experiência. O interesse delas foi tamanho que até me causou alguma preocupação. Lembro-me, como se fosse hoje, das meninas exibindo amostras do piso do teatro devidamente etiquetadas, além do relatório minucioso em que incluíram suas peripécias, como subir escadas altíssimas e conversar com pedreiros que lá trabalhavam. De imediato, meu instinto maternal me fez imaginar os riscos que correram. Ainda bem que os anjos da guarda das arteiras tinham estado de plantão! Dei graças por tudo acabar bem, sem sobrar algum problemão para mim, embora eu não tivesse mandado ninguém subir escadas... Ainda conservo alguma coisa desse material, prova da visitinha das alunas nota dez – turma de 2001: amostra do piso de 1986 e a do que o substituiu, além de um fragmento da estátua do saguão. Reinaugurado o teatro, mesmo sem estar completo, vieram as batalhas para angariar recursos que possibilitassem seu término. A criação da AMITE (Associação dos Amigos do Theatro), em 2003, colaborou, e muito, para a reativação do espaço precioso. Programação eclética passou a movimentá-lo, regularmente. Poucos eventos teatrais, para minha decepção, mas muita música, dança, canto e o melhor, a Semana Guiomar Novaes. Esse evento cultural, considerado o segundo mais importante do Estado de São Paulo, é aguardado pelos sanjoanenses com muita expectativa, pois, além de honrar a pianista mundialmente reconhecida, proporciona música de qualidade aliada a artistas de renome. Ano a ano, o cronograma do Theatro tem sido incrementado, com festivais e semanas específicas, em homenagem a artistas locais, como Semana Assad, Festival de Teatro Atílio Gallo Lopes e, agora, Semana Gavino Quessa. Outros eventos de porte acontecem, como a Semana da Educação, com palestras que lotam a plateia. Ressalto que o Theatro Municipal não é um mero teatro, neste Brasil. É uma obra especialíssima, pois gente de peso que tem o prazer de pisar naquele palco é pródiga em elogios, quanto à acústica perfeita, além de enfatizar a beleza delicada da forma e do acabamento da casa de espetáculos que, regularmente, brinda São João da Boa Vista e região, com entretenimento, cultura e emoção ímpares. Impossível ignorar que uma filha desta terra foi grande incentivadora do teatro amador em Santos, como testemunha o escritor santista Pedro Bandeira, em O fototeatro de Plínio Marcos (Folha de S. Paulo - 30/3/2014): ‘No final dos anos 50 e inicio de 60, vivi o teatro amador em Santos, como companheiro e ator de Plínio Marcos e sob o incentivo de Pagu, a Patrícia Galvão.’ Assim, seria justo que a emblemática Patrícia Rehder Galvão (1910-1962) “aparecesse” nalgum cantinho dessa pérola centenária e digna de muito zelo, nosso Theatro Municipal, patrimônio indispensável à difusão das artes e da cultura. Junho/14 M. Inês Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 7 de junho de 2014

DOIS NA BOSSA: ELIS E JAIR

Dois na Bossa: Elis & Jair Manhã de 19 de janeiro de 1982. Eu estava curtindo a Pauliceia, na companhia de minha tia, na Rua Martim Francisco, bairro Santa Cecília. Logo cedo, após o café, era de praxe assistir ao noticiário matinal. E então a notícia da morte de Elis Regina deu-nos um supetão, pondo nosso dia de pernas pro ar. Como? Por quê? Inacreditável que a pequena esfuziante, polêmica, de apenas 36 anos, partisse assim, no auge da carreira, sem mais nem menos. Perdas trágicas sempre são questionadas. Afinal, Elis esbanjava vida, ela e seu sorriso espontâneo. Quem sabe sofresse de tristeza trancada. O Brasil lamentou, chorou. Vivíamos ainda o Estado de Exceção, instalado no país com o golpe de 1964. Período que a gaúcha Elis não deixou passar batido. A seu modo, esperneou, através da sua voz marcante, interpretando composições que falavam de infância, de cores, de armas e flores. Hoje, domingo, 1º de junho de 2014, ouço um exemplar de “O Melhor de Elis” (coleção da Folha de S.Paulo): o CD Dois na Bossa, gravação ao vivo do show de Elis e Jair, no Teatro Paramount, em 1967(São Paulo). O repertório todo tem conotação com perdas: _ Enquanto a nossa meta não for atingida, Continuamos gritando o nosso canto, Enquanto nossa música não voltar ao que é, Nós lutamos, faz escuro, mas nós cantamos, O amanhã tá breve, Vamos cantar logo, logo, O que é nosso, Porque mais que nunca é preciso cantar o que é nosso!...(“Imagem”, de Luiz Eça e Aloysio de Oliveira) _ A minha música não traz mensagem, E não faz chantagem ou guerra fria, E nem fala em ideologia, Eu vim apenas para lhes falar De uma grande perda, Que nem sei se é da direita ou da esquerda, E o que me importa se a censura corta, Pois eu gosto dela se é vermelha Ou se é verde e amarela... (“Manifesto”, de Guto e Mariozinho Rocha). Trinta e dois anos se passaram. As letras interpretadas por Elis e Jair, em Dois na Bossa, são instigantes. Repensa-se a Pátria, repensa-se a cidadania e a vida. Elis foi-se muito cedo. Será que vislumbrou o país nos trilhos da plena democracia? Jair acaba de partir (8/5/14). Conferiu e vivenciou um Brasil modestamente equilibrado, mas deve ter levado algumas preocupações com ele. Irreverente, brincalhão, talvez paire por aí, cantando algo assim: Brasil, vença a Copa, Depois, mãos à obra! Veja se topa Endireitar de vez: Educação, saúde, segurança, habitação E todo o resto, Sem deixar sobra. Saiba, meu povo: Daqui do andar de cima, Planto bananeira, À minha maneira, De olho bem aberto em vocês. Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 31 de maio de 2014

COMPORTAMENTOS NO THEATRO MUNICIPAL

Comportamentos no Theatro Municipal Em palestra recente na Flipoços 2014, Mario Sergio Cortella, filósofo, escritor, educador, palestrante, professor universitário, ressaltou a importância da nossa atitude “ornar” (expressão mineira). Mas ornar com quê? Verbo transitivo indireto requer complemento, não é? Assim, nossa atitude tem que ornar com algo. Na verdade, Cortella quis ser poético, ao falar de adequação da conduta às situações no nosso viver. Nesse sentido, penso que cursos de comportamento fazem muita falta, pois no cotidiano vemos coisas do arco da velha, isto é, absurdamente inadequadas, em que nada orna com nada. Na terrinha, o fim de semana passado foi agitado pela Virada Cultural, parte do cronograma estadual que tem brindado diversas cidades com programação eclética, durante 24 horas ininterruptas. Na Virada, toda faixa etária tem opções de entretenimento, tanto no Theatro Municipal como ao ar livre, em vários locais, com prioridade para o Largo da Estação. Só gosto de comentar o que meus olhos veem. Assim, atenho-me à postura do público, em duas belas apresentações que conferi no Theatro Municipal: Cia. de Dança, no sábado, e Dança Flamenca, no domingo. Pra variar, levanto a questão das benditas maquininhas que se apoderam do nosso tempo e invadem todos os ambientes, sem exceção. Como é possível curtir o que se passa no palco, numa boa, com braços que se erguem aleatoriamente na plateia, para captar fotos e fazer vídeos? Como é possível o artista ou o grupo artístico se concentrar no desempenho, com flashes batendo, impiedosamente, nas suas caras (“faces” é mais bonito!), atrapalhando-lhes a visão e interferindo até na iluminação do palco? Para não perdermos lances do espetáculo, nosso pescoço passa por uma sessão involuntária de alongamento pra cá e pra lá, graças aos espaçosos de plantão, inclusive alguns fotógrafos de jornais sanjoanenses. Eles deveriam ser os primeiros a dar o exemplo, ao fazerem seu trabalho. Há várias alternativas para tal, sem atrapalhar o espectador. Maquininha de amador acionada a torto e a direito, durante eventos, virou febre. Homem, mulher, criança, todo mundo a postos, brincando de fotógrafo. E, claro, conectados, partícipes da gincana virtual, com postagens imediatas. Como se não bastasse essa perturbação toda, temos lá os casais trocando amassos desastrados, num incansável passa-passa de braços, os quais, quase sempre, relam em quem está atrás ou ao lado, além de mãos inquietas a apertar daqui e dali, a alisar orelhas, cabelos, nucas etc. Entre um amasso e outro, cabeças que se encostam , desencostam, entortam, para troca de beijos sem poesia. Pura fazeção de coisas que nada inspiram. Nem causam inveja... Quem tem estômago para apreciar um espetáculo nessas condições? Ninguém. Apenas, as reações divergem. Uns, incomodados com o péssimo comportamento dos vizinhos, seguem a máxima “Os incomodados que se mudem.”, levantam-se, furibundos, e procuram outro lugar. Outros trancam a cara, resmungam, cutucam as cadeiras dos inoportunos. Pior ainda, outros se mandam impetuosamente, tropeçando nos degraus (um defeito grave do nosso teatro), e abandonam o local. Reclamar pra quem? Ressuscitem-se os lanterninhas, aqueles do “nosso tempo”, que, sorrateiramente, focavam os arteiros, achegavam-se e, com um simples toque, impunham respeito. Se não eram acatados, convidavam o malcomportado a se retirar do recinto. Seguranças plantados nos corredores laterais têm outra função, como inibir badernas e brigas; não os substituem. O Cortella fala de “ornar”, lindo vocábulo! Então, fica aqui uma pitada de mineirice: comportamentos como os acima descritos ornam com o Theatro? Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br

sábado, 10 de maio de 2014

AS MÃOS DE MINHA MÃE

As mãos de minha mãe Mãe, Aceitei sua partida, Porque faz parte da vida. Mas seus últimos dias De terrível sofrimento, Isso jamais aceito. Quero falar das suas mãos, Não das que, inertes, pareciam pão: Sabe, mãe, aquele pão Que você fazia, Pondo uma bolinha No copo d’água fria? Assim que ela vinha à tona, Você, cheia de graça, Ligeira, trabalhava a massa, Modelando pães perfeitos, Pincelados de fina gema. Mãe, esse era seu jeito. Sim, seu jeito, Mãe, De doar suas mãos, A tanta gente, tantos feitos, Ao Dan, aos filhos e netos, A quem estivesse por perto. Em especial, mãe, Quero falar de suas mãos Nos últimos anos, Acariciando-me o braço Ou apontando meus lábios E o batom fraco. Quem sabe, mãe, Ao registrar a imagem De suas mãos lembrando pão, E delas, dias antes, em tremores, Confundidos com Parkinson, Eu me livre de fundas dores. Dores da alma, Que não se conforma Com a imperícia e o descaso, Que transformaram não só suas mãos, Mas você toda, mãe amada, Num enorme pão disforme. Maio/14 minesprado@gmail.com Publicação na Gazeta de São João de 10/5/14

sexta-feira, 9 de maio de 2014

RETIRO ESPONTÂNEO

Retiro espontâneo Vez ou outra é preciso chutar a rotina, como um meio de recarga dos neurônios, ou melhor, de reativá-los, chacoalhá-los. Nestes dias, é o que faço, “morando” na FLIPOÇOS 2014, na vizinha Poços de Caldas, MG. Se ano passado, fiz isso apenas como visitante, assistindo a palestras, conhecendo gente que só tinha visto na TV, agora ouso mais: além de visitante, participo do Recanto dos Escritores Independentes, eu e mais uns doze ou treze viciados nas letras. Nossa independência é tamanha que nos reservaram um espaço, não gostamos, mudamos para outro e boa! Não estamos mais no fundão da URCA, mas numa passagem onde, claro, o vaivém é constante. Temos passado um frio de lascar, pois há vento encanado, como dizem os velhos. Ali vemos e ouvimos de tudo, além de trocar ideias de escrevinhador. O papo só se interrompe, quando alguns visitantes param, para conferir nosso trabalho – livros feitos, na maioria, à nossa custa. Impossível colocar aqui tudo o que aprendo e rio, nos últimos dias. Há, por exemplo, um argentino que está no Brasil pela primeira vez e que nada sabe da nossa fala. Em compensação, no meu caso, entendo um pouco de espanhol, mas nada falo. Combinamos ensinar um ao outro. Ai, que salada! Queremos explicar “cabaça”. Até chegar lá, passamos pelo capacho, abóbora, chimarrão e sei lá mais o quê. Graças à bebida dos pampas, vem o consenso, já que o recipiente em que se prepara o chimarrão é feito de cabaça. O argentino diz que é “calabaça”, mas o Google me mostra diferenças. Deixo pra lá. Explico ao argentino que tenho algumas cabaças envernizadas, que dão um som legal, para acompanhar um sambinha... Por sua vez, o alagoano Cartucho, escriba de cordel, sósia de Gandhi, faz sucesso na FLIPOÇOS, inclusive com um encarte excelente para educação infantil no trânsito, trabalhado de A a Z; ex.: “P” de perigo. Aconselho-o a levar o material a autoescolas, diretorias de ensino, polícia militar, DER etc. Ele alega que nada conseguiu, em Alagoas. Um desperdício, pois o material é ótimo, até para panfletagem nos pedágios. No cardápio eclético, chama a atenção o processo civil em poesia: artigos do código são seguidos de alegações rimadas, uma delícia trazida por um advogado mineiro de Piumhi, cidadezinha próxima à serra da Canastra. Da lavra de uma carioca, há obras para educadores que lidam com a inclusão. De uma bancária aposentada, poesias profundas, curtinhas. Vez ou outra ela, tímida, arrisca: “Gosta de poesia?” Alguns passantes se interessam param, leem, elogiam; outros, falam um ‘não’ categórico ou apenas meneiam a cabeça. Um casal chama nossa atenção: o marido quer mostrar um poema à mulher; ela, amuada, dá de ombros e segue em frente. Como entender as mulheres? Se o cara não é romântico, queixam-se; se o é, ignoram-no. Caso à parte é a senhora que agita o pedaço, ostentando um cartaz sobre Alzheimer. Como cuida da mãe possuída pelo “alemão”, entendeu a importância de se pensar nos cuidadores, os verdadeiros, bem entendido. Assim, registrou no papel a própria experiência. Há um garçom poeta. Caracterizado, ele gasta muita sola de sapato na feira e promete cantar-me ‘Garçom, olhe pelo espelho, a dama de vermelho, que vai se levantar...’ Pra me divertir, amanhã usarei vermelho. E mais um tipo inesquecível, insistente pescador de freguesia: “Astronomia? Cosmologia?” Depois que a turma para, não consegue escapar da falação entusiasmada do idoso teimoso e sem desconfiômetro, cuja esposa é o anjo da turma. E uma patroa “santa”. Um dos lances mais engraçados: os pidonhos de restos do cafezinho que a gente toma para espantar o frio. Imaginem a minha cara, diante de um grandalhão pidonho de café. Brinco com ele, que não beba onde bebi, ou seja, na marca do batom. Justifico-me, com o velho ditado de que se descobrem os segredos do outro; não tenho coragem de lhe falar da falta de higiene. Pois não é que o cara de pau volta com “meu” copo vazio e tem a ousadia de dizer: “Olhe, descobri seus segredos, posso contar?” Depois dessa, fujo dele, apenas um cumprimento e ponto. Assim estou eu, neste final de abril gelado, num retiro espontâneo, longe de noticiários e jornais, nadando num mar de livros, escritores, palestrantes, tomando fôlego apenas para falar de rolinhas e gatos. Hoje, 29/4, emergimos das letras, para curtir excelente conjunto de jazz de Belo Horizonte, retrato dos anos 20, 30 e seus musicais fabulosos. Abril/14 M. Inês Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 3/5/14

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Madre Assunta, próxima beata do Brasil

 _ Você nunca será muito fervorosa – garantiu-me um diretor espiritual. Nada retruquei, mas pensei e muito. As aparências enganam! Gente introvertida não é de muitas demonstrações. Aquele padre deveria me conhecer melhor, pelo tempão que entregava minha alma a ele. Que decepção! Sou católica. Se por devoção ou tradição, não sei. Mas tenho a certeza de ser minimamente cristã. Viver em plenitude é seguir Cristo; ainda chego lá. Em 1993, recebi um livreto sobre a trajetória belíssima de Madre Assunta Marchetti. Como me fora enviado por um amigo que participava do Circulo do Livro, estava com dedicatória da scalabriniana – Irmã Maria Blandina Felipelli, responsável pela vice-postulação da beatificação de Assunta. O livreto incluía relatos de graças obtidas por aqueles que oravam para a Madre, nascida na Itália, em 1871, e falecida no Brasil, em 1948. Li-o, atentamente. Um dia, atordoada com mil problemas, telefonei para Irmã Blandina, apresentei-me, batemos um longo papo; ela, ótima ouvinte e conselheira. Como o natal estava próximo, pedi-lhe que me mandasse um tanto de impressos com a oração à Madre Assunta. Eu os enviaria aos amigos, com votos de boas festas. Agradeci e aguardei. Logo, recebi uma cartinha carinhosa da Irmã Blandina, juntamente com meu pedido. A partir daí, fez-se um forte elo entre mim e Assunta, que viera para o Brasil, por insistência do irmão, Padre José Marchetti, cofundador da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Barromeo – Scalabrinianas. Ele alegava haver, aqui, muitos desamparados, órfãos, migrantes, carentes de assistência irrestrita. A jovem Assunta, decidida a ser carmelita, mudou sua trajetória, uma dádiva para nosso país, já que seu desvelo aos menos favorecidos era incomparável e, logo, reconhecido como exemplo de altruísmo especial. Após a morte da religiosa, em São Paulo, onde há a Casa Madre Assunta, orações para que ela intercedesse em causas difíceis se tornaram frequentes. Diante do relato de centenas de graças alcançadas, a congregação decidiu postular a beatificação da boa Madre. Durante esse processo, um convite da Irmã Blandina Felipelli me surpreendeu: _ Maria Inês, gostaríamos que você fosse divulgadora da campanha pela beatificação de Madre Assunta – disse a voz delicada, do outro lado da linha. _ Irmã, eu? Imagine, sou “pequenininha” para essa missão! Só que a insistente irmãzinha me dobrou e eu me vi distribuindo a oração à Madre Assunta, não apenas nas igrejas, onde tive oportunidade de falar dela, mas na rua, no trabalho, no ônibus, em todo canto. Além disso, quando eu enviava cartas, anexava a oração que, para mim, já tinha demonstrado ser “ótima”. Vez em quando, eu telefonava ou escrevia para a Irmã Blandina, relatando graças que eu havia alcançado. Também lhe contava sobre as coincidências de os informativos chegarem a mim, quando eu estava com alguma atribulação. Ela me asseverava que não eram coincidências, que eu desenvolvera um laço fortíssimo com Assunta. E ela estava e continua certa. Há poucos anos, Irmã Blandina faleceu e, com isso, não recebi mais nada da Casa Madre Assunta. Essa ligação parecia adormecida dentro de mim, até 4 de abril último, quando exultei diante do que li na Folha de S. Paulo – A9: Assunta Marchetti será declarada beata do Brasil em outubro próximo. No ato, espalhei a boa nova, através de telefonemas, postagens virtuais, emails. Minha emoção com o resultado de uma longa campanha que eu julgava extinta é indescritível. Dizem que sou privilegiada, com o que concordo. Afinal, esta “pequenininha”, está em meio a algo grandioso:uma beatificação. Que num futuro não tão distante a beata se torne Santa Assunta Marchetti! minesprado@gmail.com Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br Abril/14

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Infância ontem e hoje

Infância ontem e hoje No século 20, a abertura entre pais e filhos era restrita ao essencial. Embora o convívio fosse maior, o respeito excessivo pelos adultos, aliado ao temor, fazia a criançada passar apertos terríveis, sem que os pais suspeitassem de algo errado. A garotada mais expansiva se aliviava com os amigos. Porém, quem era introvertido sofria muito. O refúgio era o quarto, mas, se o repartia com irmãos, só sobrava mesmo o banheiro, onde o menino ou a menina amargava interrogações e conflitos, falando com as paredes e deixando a água da torneira escorrer, para abafar os soluços. Bullying - violência física ou psicológica intencional e repetida - é um dos tantos fardos da infância. Ele está por toda parte: na escola, na família, nas brincadeiras fora de casa. Mas, no passado, raramente os adultos estavam a par dessa perturbação sofrida pela criança. Ou, mesmo cientes, faziam vista grossa, talvez por medo da reação do causador do bullying ou por receio de desavença em família. Dois exemplos de bullying que nunca ninguém soube, ninguém viu: *_ Vai, baiaca, sua molenga, corre, passa a bola pra cá! _ berra o tio da desajeitada, em férias na casa dos avós. Baiaca, molenga. Essas ideias grudam nos miolos da coitada, gordinha e molenga mesmo. E, se o tempo for espremido ou ela for pressionada, aí é molenga e meia. Por isso, procura isolar-se das brincadeiras. Padece calada, chora por dentro. *Dois irmãos grandalhões, uma garota e um garoto, filhos de donos de armazém, estudam na mesma sala da menina tímida, “crente”, sempre atenta aos seus deveres. O garotão cisma com ela, persegue-a na classe, no recreio, na fila. A qualquer chance, tenta cutucá-la por trás. Às vezes consegue. A menina vive apavorada, sente-se acuada. A professora, moça ainda, não controla a situação, parece temer o brutamonte insuportável. O ano letivo se arrasta. A menina dorme mal, preocupada com o amanhã. Nem pensa em contar aos pais o drama na escola. Um alívio, quando tira o diploma do primário e se vê livre do algoz. Alívio maior, quando o pai conta que foi transferido para outra agência bancária e que, logo, a família se mudará para perto da praia. Ela não pensa nas delícias do mar, da areia; sua ideia é fixa: ficar longe do “tarado”. Mas a menina se engana. O demônio aparece onde ela menos espera. Num final de tarde, ela volta do ginásio, tranquila, ouvindo o canto das cigarras. De repente, avista, do outro lado da avenida, o gigante montado numa bicicleta de entregador. Ela treme, o coração pula, as pernas bambeiam. Reza para que ele não a veja. Corre, chega em casa, apavorada. E ninguém sabe, ninguém vê. Deve contar pra mãe, pro pai? Cadê a coragem? Se antes escondeu tudo, agora não adianta contar, pois o grandalhão está solto num outro mundo. Conclusão: cada vez que põe os pés na rua, pede proteção divina, para que o tal fique longe dela. O martírio permanece em segredo. Sua palidez demonstra que alguma coisa grave ela tem. Os pais, erroneamente, atribuem o abatimento da filha às cólicas das “regras”, outro fardo que acaba de aparecer na vida dela. **** _ Mãe, acho que você deve ter sofrido muito em criança! _ Ué, por que essa agora? De onde você tirou essa ideia? _ Nossa, mãe, você tem tanta pena dos pequenos! Só pode ser por isso! É, talvez seja... Aquela menina, agora mulher, vê poucas mudanças na infância de ontem e de hoje, ou melhor, um tremendo paradoxo: ontem, havia convívio maior, entre pais e filhos, mas os tabus eram montanhas intransponíveis; hoje, há abertura, (até demais), mas a convivência é minguada, para não dizer nula. Assim, as crianças sofrem bullying e outros pesadelos do mesmo jeito – sozinhas, na frente das telinhas. Abril/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br