sábado, 9 de agosto de 2014

Patente de pai

Patente de pai Se pudesse criar uma patente de pai, eu o faria rapidinho. Inscreveria meu saudoso pai, Danilo Bohn Prado, como produto único. Dizem que filha idealiza o pai como modelo de homem. Até concordo, mas isso não me abala. Mesmo porque distingo o que ele tinha de fantástico (até no nome: Bohn) e o que tinha de quase bom, pois algumas arestas precisavam ser ajeitadas. Pouca coisa a mexer, para ele ser “dez”. Paciência, meu pai tinha de sobra. Pequenina, convivi com esse retrato consubstanciado na confecção anual de balões, em agrado à amada junina, mamãe. Eram perfeitos, delicados, papel de seda com dobrinhas milimetricamente calculadas, cola na dose certa, decoração criativa – a cada primavera de mamãe, dizeres diferentes no conteúdo e na forma. Como à época não havia proibição, soltá-los era uma festa. A paciência permeou a vida dele toda. Talvez porque fosse exímio adestrador e pescador, era capaz de passar horas a fio, sentado, calado, em vigília, ao lado de um doente da família. Meus “pepinos” de saúde foram amenizados por sua presença amorosa. Também lhe devo lições que me acompanham vida afora, como enxugar o vão dos dedos do pé com rolinho de papel higiênico e segurar o queixo, para não dormir de boca aberta... Na hora dos pesadelos escolares, ensinou-me a deslindar problemas de matemática: “Um tanque tem duas torneiras, uma despeja tantos litros por hora, outra..., em quanto tempo o tanque estará cheio?” Assim, deixou-me afiada para o terrível exame de admissão ao ginásio. Outro retrato de paciência: embalar nenês no carrinho ou segurar-lhes a mãozinha, até que dormissem, ou ensiná-los a andar, no que passava horas, sem nenhum sinal de cansaço; fazer-lhes garrafinhas do gomo da laranja, oferecer-lhes uvas descascadas e sem semente e muito mais. Segurança da presença silenciosa. Meu pai não precisava dizer absolutamente nada, para transmitir confiança, acolhida, apoio. O olhar firme, as mãos fortes, o porte de lorde ou poeta ou filósofo – tinha de tudo um pouco -, apenas ajudavam a pintar o retrato. O interior de meu pai, isso sim, transbordava segurança. Contava-se com ele. Caráter reto iluminava sua face. Solidez de princípios tornavam suas atitudes coerentes até demais. Outro dia contei, aqui, que papai, congregado mariano, deixara de comungar, porque ele e mamãe precisaram evitar filho, renunciando ambos à eucaristia, até a morte. Infalível nos deveres, era pontual em tudo e prezava a “satisfação”, quando não pudesse cumprir algo. Esperava o mesmo dos outros... Perseverança, uma lição que nos deixou, para conhecer o progresso. Adolescente, órfão de pai, estudava à noite e trabalhava durante o dia. Sua carreira de bancário deve-se aos cursos de aprimoramento feitos com bastante sacrifício: contabilidade, taquigrafia, inglês, português, alguns por correspondência. Arestas a serem aparadas, papai as tinha, por força da genética alemã. Uma delas era-lhe constrangedora e, por extensão, a nós todos: a dificuldade de dar beijos e abraços. Mas eu via carinho sem tamanho em outros mimos dele, como me acordar com café com leite espumante. Outra aresta era o excesso de reserva e exigência com ele próprio, ou seja, “polícia 24 horas”. Herdei muito disso, o que me dá um trabalhão. É preciso balancear certas facetas nossas, para não sofrer ou fazer sofrer. A descrição do “pai” que gostaria de patentear encheria mil laudas. Como o espaço no Cotidiano é exíguo, arremato: meu pai, sério ou alegre na medida certa, é produto cada vez mais raro, não só pelo amor consagrado à família, mas pelo legado dos legados – o nome honrado e a educação através do exemplo. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br

sábado, 2 de agosto de 2014

Vovozado

Vovozado Hoje, 26 de julho, é Dia dos Avós; portanto, meu dia, seu dia. Segundo a história, Santa Ana e São Joaquim, pais de Maria e avós de Jesus Cristo, são nossos padroeiros. A data da celebração passou por várias alterações, até o papado de Paulo VI, a quem é atribuída a inserção no calendário atual. Para mim, o vovozado começou faz tempo. Num aniversário meu, vinte e oito anos atrás, ganhei bombons, com um cartãozinho: “Parabéns, futura vovó!”. Desde então, a fila puxada por Bruna encompridou. São quatro netos – três meninas e um garoto - todos bem crescidos, lindos, inteligentes e tudo de bom que olhos de avó enxergam. O melhor, trazem alegria a esta fase de futuro curto. Retribuo-lhes, com amor pintado de mimos e experiências. Na verdade, jamais esqueço que sou avó. Se vejo algo que lembre algum (a) neto (a), pronto! Já me ponho a pensar no seu jeito, seu cheiro, seus carinhos. E quando eles vêm me ver ou vou a eles, aí é uma maravilha! Neste ano, entre março e julho, tive a visita dos quatro, um por vez. Em março, num fim de semana relâmpago, Bru veio despedir-se, antes de alçar voo, para estudar, passear e também encontrar-se com seu amor. Apesar de pouquíssimo tempo, até baile fomos; Bru, toda bela, parou a festa. Em abril, Lu voou do nordeste para cá. Peguei-o em Campinas, todo importante, mochila nas costas, carteira de homem, o retrato da independência. Fomos à Milk Moni, ao Bedrock, batemos muito papo e, de quebra, paciente, deu-me dicas de informática. Ah, Lu trocou lâmpadas pela primeira vez na vida. E na minha casa. Creio que guardará essa experiência bem guardadinha, para contar aos filhos dele... O tempo foi pouco, mas rico. Em junho, foi a vez de Lê voar sozinha, para visitar os três avós. Ficou uma semana aqui. Logo na chegada, estendeu-me, meio tímida, um embrulho de papel-bolha. Ansiosa, só sossegou quando abri o presente - uma cumbuca rosa e branca, pintada por ela. No fundo os dizeres: “Vovó Inês, te amo. Lê -2014”. Diante de carinho de neto, impossível evitar o core acelerado. Lê quis ajudar-me com meus livrinhos, mais de duas centenas, para carimbar o registro dos direitos autorais, embalar em saquinho plástico e lacrar. A jeitosinha passou tardes inteiras nessa “brincadeira”. Se dependesse dela, não faria outra coisa. Não sairia nem para a festança de São João, vestida a caráter, em tons de branco e lilás. Por fim, disse que queria trabalhar com carimbos, pode? Mas também quer ser aeromoça, professora, comerciante etc. Foi uma companheira e tanto que me veio da Bahia. Pôs-me roupa no varal, recolheu-a, ajeitou a cama e as coisas dela, como uma mocinha. No dia em que a levei a Viracopos, meu coração ficou apertadinho. Entregá-la nas mãos de estranhos, ainda que da companhia aérea, foi um sufoco. Mal me aguentava de pé, ao dar as costas para vir embora, pedindo ao bom Deus que a protegesse, até chegar às mãos dos pais. E neste meado de julho, matei a saudade de Manu, moreninha brejeira. Embora os pais e ela ficassem numa pousada, tivemos chance de partilhar coisas simples e gostosas, como os animaizinhos na SES – coelhos, patos, gansos, passarinhos, galinhas e muito mais. Manu é boa ajudante na cozinha. Sua salada de frutas é perfeita, tudo cortado miudinho, uma delícia. Adora enfeitar pratos e ama agulha e linha, até me fez uma bonequinha de pano. O que quero mais? Curtir muito meu vovozado, enquanto Deus permitir... minesprado@gmail.com Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 26/7/14

O que é ser útil

O que é ser útil Tem rodado muito na internet um vídeo do padre Fábio de Mello, abordando a utilidade das pessoas... Há pouca novidade nas palavras do padre, mas sempre é “útil” rever certos aspectos desta vida, no caso, relações estabelecidas entre humanos, em função da serventia de cada um. Como, sábado passado, escrevi gostosamente sobre meu vovozado, nada mais natural que eu o ligue à utilidade do idoso. Com que olhos essa questão é vista? Creio que depende muito do olhar - se de uma criança, um jovem ou um adulto. Idosos, de modo geral, são pacientes, adoram contar histórias e ensinar brincadeiras às crianças, razão pela qual muitos acabam como babás dos netos, sendo “utilíssimos”. Mas, quando se negam a tal, são úteis para a família? Provavelmente, não. São estorvos e, talvez, desencaminhadores dos netos, já que avós têm um jeitinho especial de deixar neto fazer o que quer, e até são coniventes nas infrações dos pequenos. Queria estar errada, mas parece rarear um idoso “inútil” que seja querido pelos seus. Não sei se a razão são as profundas mudanças no mundo: o perfil pai/provedor, mãe/dona-de-casa já era, as casas ficam vazias a maior parte do tempo, pois cada um vai para um lado, o dia passa com raros encontros da família. Então, o idoso vai ficar com quem? Fazendo o quê? Vira pacote pronto para passar às mãos alheias, sejam de profissionais, sejam de amadores. Mas deixemos a questão idoso/família de lado e vejamos o relacionamento idoso/amigos. Se o idoso é ativo, bem de vida, mesmo que ranzinza, terá um exército de amigos da mesma faixa etária, pois é quase uma utilidade pública: para os amigos e também para o governo, porque não pesa no sistema previdenciário. Ele se cuida, faz musculação, come do bom e do melhor, dirige, compra/vende, viaja, é livre pra fazer o que lhe der na veneta, até para meter a mão no bolso. E a bengala? Ora, em velho rico, a bengala é charme. Se o idoso, ainda que ativo, for um pé rapado, a realidade é outra. É provável que fique enfurnado num cantinho, falando com as paredes. Dificilmente receberá visitas. Sua utilidade só não será zero, se for ótimo em trabalho voluntário ou em jogos de tabuleiro e carteado. Então, seu mundo se ampliará nas instituições de comadres/compadres ou pracinhas, pois bom parceiro é sempre útil. Será que o idoso faz amizade com jovens? Por ele, sim, mas quais jovens querem saber de papo de velho? Poucos valorizam a experiência dos anos. De modo geral, para a moçada, velho é sinônimo de chatice e reumatismo. Retomando o vídeo do padre Fabio de Mello, é melhor esquecer a nossa utilidade ou inutilidade e viver a doce vida. Se puder ser ao lado da família, mesmo que nos pinte assim ou assado, melhor. E, claro, ao lado dos amigos do peito ou nem tanto. Porque, se formos esmiuçar se prestamos ou não para alguma coisa, se somos úteis pelo nosso bolso ou pelo nosso coração, esqueceremos o azeite da máquina que já começa a emperrar. Deus nos livre! minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Agosto/14 publicação no Edição extra de 2/8/14

sábado, 5 de julho de 2014

IGREJA EM TRÂNSITO

Igreja em trânsito Domingo, dia de são Pedro, a Folha publicou editorial – Igreja em trânsito - sobre as mudanças que a igreja católica pretende realizar, após pesquisa junto às dioceses, em que religiosos e católicos praticantes opinarão sobre temas polêmicos; ex.: o filho adotivo de casal homossexual faz jus ao sacramento do batismo, através do qual se torna filho amado de Deus? Tive pai “congregado mariano” e mãe “filha de Maria”, seguidores fiéis do catolicismo. Por isso, em termos de controle da natalidade, aplicavam a “tabelinha” , ou seja, faziam amor de acordo com o ciclo menstrual, a fim de não povoarem o mundo aleatoriamente. Como nem sempre a prevenção dava certo, mamãe teve sete gravidezes, cinco das quais vingaram. A prole de três homens e duas mulheres estava de bom tamanho. Impossível aumentá-la. Então, já que a tabelinha era falha, optaram por outros meios anticonceptivos, direito deles, mas contra as diretrizes de Roma. Resultado: por questão de coerência, afastaram-se da comunhão, pois viviam em pecado permanente, sob o prisma religioso... Um absurdo! Jamais engoli a ideia de que um casal amoroso, dedicado totalmente à família, fosse pecador por uma questão de foro intimo, como bem expressa o editorial da Folha de 29/6/14. Meus pais tiveram uma vida bastante sacrificada, proporcionando aos cinco filhos tudo de essencial para o bom desenvolvimento do individuo. Nossa mesa era farta, nossa saúde, zelada, nosso estudo (a maior parte em escola pública) foi de boa qualidade. Todo mundo foi batizado, fez catecismo e crisma,como manda o figurino católico. Mamãe e papai, mesmo tendo família numerosa, eram solidários e caridosos não apenas com vizinhos, amigos e estranhos, mas com a parentada toda. Então, como aceitar que se “punissem” por evitarem mais filhos? Lembrando o sermão do padre, neste dia de são Pedro: como aceitar que vivessem num martírio branco*? Não aceitava e não aceito até hoje. Após a chegada de Francisco, o papa das mudanças, vejo que estou certa, ao viver, prioritariamente, segundo minha consciência. É o que meus pais deveriam ter feito. Mas não. Dois seres absolutamente cristãos optaram pelo caminho espinhoso: a renúncia ao sacramento da comunhão, não somente enquanto mamãe era fértil, mas pelo resto da vida, já que julgavam atitude hipócrita o retorno à eucaristia. Comemoro, mesmo, a vinda de Francisco e sua visão objetiva do sofrimento imposto àquelas ovelhas desgarradas por falta de opção. Nos últimos anos, vimos avanços discretos para aliviar católicos de certos absurdos, um deles a condenação ao limbo (ausência da Luz Divina), por falta de batismo. Que culpa tem um recém-nascido de morrer sem ter sido batizado? Nenhuma. Estranho que tal aberração contra um ser indefeso, tida como “questão teológica” no documento que a eliminou em 2007, sob o papado de Bento XVI, tenha sobrevivido por tantos séculos. É um alivio a constatação de que, finalmente, o catolicismo tem olhar compassivo para divorciados, homossexuais e seus filhos adotivos, controle da natalidade, prevenção da AIDS e outros impasses vivenciados por aqueles que, compulsoriamente, têm atravessado a vida como ovelhas desgarradas. Que a Igreja de Pedro, “porteiro do reino dos céus”, remodelada sob a égide do promissor Francisco, seja sinônimo de conforto e apoio, agasalhando e norteando, amorosamente, todo cristão que a ela recorrer, em quaisquer circunstâncias. *Martírio branco: sofrimento interior, por amor a Deus. Julho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 28 de junho de 2014

Saõ Pedro único

São Pedro único _Amanhã preciso ir a Monte Santo. Minha mãe faria cem anos. Vou levar-lhe flores. Você vai comigo? – pede o homem. _ Claro, será gostoso, ainda mais que o tempo está ótimo – retruca a moça. _ Ah, esqueci, amanhã não posso, marquei hora com a imobiliária à tarde, lamenta-se ele. _ E daí? Bem, só você pode saber o que é mais importante pra você – pondera a moça, clara, mas sutil... Seria ele o mesmo homem que, na véspera, recordara o tempo de menino, soltando pião para lá e para cá, divertindo-se com as proezas para as quais ainda levava jeito? O que a vida fazia com as pessoas? Para ele o pião parecia um velho companheiro, mas, paradoxalmente, a importância de certas coisas estava meio embaralhada. O mundo adulto é bem complicado. _ É, são coisas diferentes _ ele quase engole as palavras, despedindo-se _ Qualquer coisa eu ligo. Dali a quinze minutos o telefone toca: _ Oi, resolvi, amanhã vamos a Monte Santo. Passo aí às 9h, ok? Às 9h?? Mas já são 3h da manhã! _ Ah, não pode ser às 10h?... _ pede a moça, com jeitinho. _ Claro, dorminhoca, uma hora a mais, uma a menos, se não der pra ir à imobiliária na volta, paciência. Finalmente, seria uma boa noite ,ou melhor, uma boa madrugada para ambos, com muitos sonhos, cada um na sua casa. Nenhuma pendência. O dia de são Pedro, 29 de junho, amanhece espetacular, céu azul, um verdadeiro convite para sair estrada afora. E lá vai o par, feliz da vida. O homem recorda. Durante anos preparara a festa na roça, festança dupla: para são Pedro e para a querida mãe, mesmo depois que ela se fora. Bandeirolas, tochas, quentão, tudo de gostoso, sem faltar o sanfoneiro. Mas ultimamente desanimara, não sabia o porquê. Fazia anos que a data passava em branco. Uma curva da estrada revela Monte Santo de Minas. Seguem direto para o cemitério municipal. A dificuldade de sempre para achar a campa da família, entre as centenas com nomes italianos, numa demonstração do tanto de imigrantes que se fixaram na região. Ela o ajuda, já o tinha acompanhado uma vez até lá. _ É esta aqui _ ela aponta. No céu e na terra acontece um são Pedro único. Nas alturas, dona Maria, sorridente, recebe o perfume das flores brancas que o filho lhe traz. Ele senta-se sobre a lápide. Lágrimas discretas rolam, enquanto conversa com o Além. A moça assiste ao momento que não se pode dividir com ninguém – o da dor que não tem idade, a dor da orfandade. Deixam o cemitério renovados. Ele, agradecido por participar do centenário de sua dona Maria. Quem sabe as flores brancas fossem pipocas lá em cima... Ela, feliz por estarem juntos naquela hora tão especial e que jamais se repetiria, salvo em outros montes... A fome bate. Param o carro. Enquanto procuram um lugarzinho para comer, ele vai assinalando a igreja em que fora batizado, a casa em que a família crescera, a rua principal. Vê gente que talvez seja do tempo dele. Decide conferir. A moça afasta-se, sob o pretexto de comprar uns cartões. Ele volta animado. Acaba de conversar com uma velha conhecida. Logo descobrem uma casa de massas onde o cardápio é promissor. Encomendam meio quilo de canelone. Uma mesinha é improvisada. Em poucos minutos, deliciam-se com o melhor canelone de ricota de suas vidas.Há coisas de que se tem absoluta certeza... Um senhor meio alquebrado entra na rotisserie. Será algum amigo dele ou de seu falecido pai? O senhor indaga quem viera visitar a mãe no cemitério local. Em cidade pequena as notícias correm. A conversa se anima, descobrem que tinham sido parceiros de futebol, e pronto. Volta-se à realidade, já que é melhor falar da Copa do Mundo do que descobrir os tantos que já se foram daquele timaço da infância... Despedem-se, com a promessa de futuros encontros, aqueles que a gente promete, mas raramente cumpre. Sem pressa, com a alma leve, o homem e a moça pegam a estrada de volta. São Pedro deve ter ficado alegre com essa comemoração excepcional e cheia de significados. Um dia único em Monte Santo de Minas, do qual resta a saudade. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br publicação no Edição Extra de 28/6/14 (redigido em 2003)

domingo, 22 de junho de 2014

Jogo de empurra

Jogo de empurra Certas características do povo brasileiro ganharam fama e deitaram na cama. Dentre elas, a eterna mania de jogar a culpa no outro, por qualquer coisa errada que aconteça, seja na família, no grupo de amigos, na vizinhança, no trabalho, no hospital, na escola ou no serviço público. * _ Maricota, o arroz tá empapado – reclama o “patrão”. _ Ah, sabe por quê? Pra variar Nica veio pedir açúcar emprestado. Você conhece bem a Nica - fala mais que a boca. E o arroz lá no fogo... * _ Mãe, olhe, já disse: não fui eu que joguei a toalha no chão, foi o Pipoca que usou o banheiro. Pô, mãe, tudo nesta casa é minha culpa! Já tô... * _ Zé, pelo amor de Deus, cortaram a luz! Quantas vezes já lhe implorei que pague as contas em dia! Tenho uma pilha de roupa pra passar! – choraminga a mulher ao celular. _ Caramba, Dilminha, lá vem você com suas acusações! Eu já lhe expliquei que a nova secretária é desencanada: confere a agenda para “ontem”. Dá nisso. Olhe, mando pagar já, viu? Fica calma. Vai passar minhas camisas na vizinha... * _ Menino impossível! Já falei pra parar de jogar bola na calçada! Dona Maria veio, novamente, reclamar das boladas nas plantas dela. _ Mãe do céu, não fui eu, foi o Zezinho, aquele perna de pau não acerta uma. * _ Senhores Vereadores, a novela do IML é desmoralizante. Cada mês que comparecemos à Câmara ouvimos uma desculpa: ora é a reforma que ainda não acabou, ora é o concurso para médicos legistas que não aconteceu, ora são os legistas que se aposentaram ou os novos que pediram transferência pra Caixa-Prego (tecendo pauzinhos, claro!), ora é o prefeito que não atende aos edis, para a reunião solicitada, ora é por culpa exclusiva do Estado, pois o Município nada tem a ver com a questão. Basta, senhores! Se o IML não funcionar incontinenti, faremos greve de cidadania! No cotidiano convivemos com o “tirar o corpo fora”, em todo lugar, inclusive escolas, pronto socorros e hospitais. É o papel de bala jogado “pelo outro”, no chão da sala de aula; é o médico que cancela as consultas do dia, por conta de uma emergência (“emergência” é sinônimo de salvadora da pátria), e por aí vai. Nos meses que antecederam a Copa do Mundo, as desculpas e culpas do outro choveram na mídia escrita e falada. Obras inacabadas, acidentes de trabalho nas mesmas, enfim, um quadro caótico por culpa da empreiteira, da chuva, do vento, do cisco no olho do funcionário, de qualquer coisa, menos dos responsáveis. Michel Kepp, americano radicado no Brasil, jornalista, autor de “Tropeços nos Trópicos”, Editora Record, 2011, passeando pelas contradições culturais entre Estados Unidos e Brasil, fala do “jeitinho” brasileiro que contamina a maioria do nosso povo. Eu diria que é mal sem remédio, tão enrustido na sociedade que não surpreende. E diria também que o “jogo de empurra”, ou seja, não assumir responsabilidades, mas transferi-las a terceiros, faz parte desse “jeitinho” que, desconfio, é genético. Nota-se que, em algumas famílias, jogar a culpa pra cima do outro é absolutamente normal no convívio entre pais e filhos, gerando um clima de acusações mútuas insuportável: a criança vai à escola sem uniforme porque “mamãe não lavou a blusa”; a mãe não lavou a blusa porque, na véspera, ao chegar da escola, a criança não trocou de roupa – foi direto pra casa do amigo. Quem já não ouviu essa ciranda? Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 21/6/14

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Rainha sem cetro e coroa

Rainha sem cetro e coroa Quem não se recorda do colchão de palha, da cama de vento - aquela dobrável -, do estrado de molas etc. e tal? Pois é, na juventude topávamos qualquer canto, para descansar nosso esqueleto saudável, todo ajustadinho. Mas, depois de certa quilometragem rodada, nossa coluna começa a resmungar. Então, a gente percebe que não é nenhum luxo a necessidade de cadeiras de ângulo reto, pernas e encosto de acordo com nossa altura, e o mais importante - colchões adequados e firmes. Sofás nem pensar; só se forem paras as visitas. Simples, não? Nem sempre. A questão é que, quando vamos pra longe do nosso cantinho, pode-se levar travesseiro, mas não dá pra carregar o resto nas costas. Aí começa o imbróglio, ou para ser franca, a via sacra: o que fazer, para aguentar estadias fora de casa ou curtir/suportar eventos prolongados? Se vamos passar dias com a família, dá para pedir, com jeitinho, que nos arranje um colchão firme. Geralmente é só roubar o do neto ou da neta, e tudo bem. Cadeira também não é problemão, a gente adéqua. Almofadas existem pra quê? Para amparar nosso lombo. Já, temporada em hotéis exige boa vontade e interesse por parte dos hoteleiros. E não se surpreendam, caros leitores: ainda há muita gente nota dez preocupada com nosso conforto. Há meses fiz reserva numa pousada em Paraty e solicitei colchão firme, tudo via internet. Foi tanta troca de e-mails que, confesso, fiquei sensibilizada. Primeiro, informaram que só tinham colchão de molas, mas providenciariam um de espuma firme. Só queriam saber se poderia ser para cama de solteiro. Depois, descreveram-me as opções da única loja da cidade no ramo. Densidade X, Y, ou Z, qual era a minha preferência? Dá pra crer? Escolhi a densidade, encantada com tanta deferência. Nessa hora é que se percebe o grau da nossa carência. Encantamo-nos com pouco... À época da viagem eu estava leve, só de pensar que meu bem estar no paraíso litorâneo estava garantido. E como! Melhor impossível. Mal cheguei a Paraty, o proprietário, um francês amável, logo quis saber se eu estava satisfeita com o colchão e, com minha confirmação, ainda comentou que era ótimo ter providenciado um, pois outros hóspedes poderiam usufruí-lo. Vejam o nível desse empresário! Faz toda a diferença, concordam? Aqui na terrinha há um local que frequento, vez em quando. Um belo dia resolvi me queixar das minhas dores, por causa da cadeira baixa, encosto inclinado, um horror. Era tão inadequada que eu não achava posição! Para minha surpresa, conseguiram-me uma cadeira de ângulo reto e, ainda por cima, estofada! O engraçado é que o pessoal já se programou para colocar a cadeira para mim. Eu vá ou não vá ao tal lugar, a cadeira está lá, reservada, como se reserva assento vip. Desse jeito, a gente até acaba acreditando que, esporadicamente, é rainha por alguns dias ou horas, mesmo que sem cetro e coroa... Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br